“Pode parecer até bobo, mas uma das razões pelas quais nos colocamos a quilômetros de distância do outro é porque, muitas vezes, confundimos “quem somos” com “quem estamos”. Tente se fazer essa pergunta agora: Quem é você? Posso afirmar com bastante certeza que a resposta será aquilo que você faz, o cargo que ocupa neste momento, a empresa para a qual trabalha, o seu status social etc. A primeira vez que me fiz essa pergunta eu mesma respondi: “Sou jornalista, editora de revista.” E então me dei conta de que eu não sou, eu apenas estou isso.
Acreditamos tão fortemente nisso que, numa reunião social quando nos perguntam: “O que você faz?”, imediatamente respondemos nossa profissão ou aquilo com que trabalhamos. São nossas credenciais para o mundoo. Então um dia surge uma baita crise econômica, você é demitido, e deixa de ser aquilo em que acreditava tanto. Isso pode acontecer na vida de qualquer um a partir da perda de emprego, do fim de um relacionamento, da morte de alguém querido, uma guerra, um tsunami, uma enchente. É incrível: em um espaço tão curto de tempo tudo o que a gente acreditava ser vai embora.
Gosto muito da médica geriatra Ana Claudia Quintana Arantes. Eu a conheci na The School of Life de São Paulo, um espaço para cursos sobre questões ligadas à vida e que tem entre seus fundadores o fisósofo Alain de Botton. Ana ministra na escola uma aula linda demais, chamada Como lidar com a morte. Ela é especialista em cuidades paliativos e lida, todos os dias, com gente que está muito próxima da morte. Ela traz alívio para a dor física – e ouso dizer que emocional também – de quem está vivenciando seus últimos dias por aqui. Ela tem, aliás, uma fala potente no TEDx FMUSP e que vale muito a pena dar uma espiada (“A morte é um dia que vale a pena viver^, disponível no youtube).
No final de 2016 ela lançou um livro de mesmo nome, no qual demonstra, no texto de abertura, a maneira como costuma se apresentar às pessoas – e o incômodo que isso causa. Ao ser perguntada, em um evento social, o que fazia, ela deciciu responder a verdade: cuidava de pessoas que morrem. Isso foi seguido por um silêncio profundo. “Falar de morte em festa é algo impensável. O clima fica tenso, e mesmo a distância percebo olhares e pensamentos. Posso escutar a respiração das pessoas que me cercam. Algumas desviam o olhar para o chão, buscando o buraco onde gostariam de se esconder. Outros continuam me olhando com aquela expressão: ~OI?´, esperando que eu rapidamente possa consertar a frase e explicar que não me expressei bem. Já fazia algum tempo que eu tinha vontade de fazer isso, mas me faltava coragem para enfrentar o abominável silêncio que, eu já imaginava, precederia qualquer comentário. Ainda assim, não me arrependi. Internamente, eu me consolava e perguntava: ´Algum dia as pessoas escolherão falar da vida por esse caminho. Será que vai ser hoje?.”
Ana Claudia Quintana Arantes é uma das médicas mais humanas e sensíveis que conheço. Ela se aproxima, toca, olha nos olhos, conversa, se interessa pelo outro, se emociona sem medo de deixar as lágrimas escororerem, e isso faz uma grande diferença na vida de muita gente. Ela afeta as pessoas porque percebe o humano que existe em cada um. Se reconhece e se entrega. E o texto não é muito diferente disso. Quando nos reconhecemos nas palavras que colocamos no papel, o outro também se reconhece. Mas este precisa ser um processo com menos máscaras. Daí a necessidade de você se perguntar: quem é você?”
Texto de Ana Holanda, do livro “Como se encontrar na escrita”.
Ana é jornalista, formada pela PUC-SP. Passou pelas principais redações de revistas do país, e desde 2011 é editora-chefe da revista Vida Simples. É embaixadora da The School of Life no Brasil. Na filial da escola em São Paulo, ministra o curso Como se Encontrar na Escrita. Também viaja pelo país dando workshops e palestras sobre Escrita Afetuosa e sobre narrativas que nascem na cozinha. Saiba mais sobre ela em www.anaholanda.com.br.
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